Marcelo Gleiser investiga discurso ateísta da ciência; leia trecho
da Livraria da Folha
Professor de filosofia natural e de física e astronomia, Marcelo Gleiser é conhecido no Brasil por apresentar temas complexos das ciências de maneira compreensível.
Em seu novo livro, "Criação Imperfeita", Gleiser examina e contesta mais de 2.000 anos de desenvolvimento científico, ao desmontar o maior mito criado pela ciência: a perfeição da Natureza.
Grandes nomes da ciência, como Galileu, Newton, Planck e Einstein, buscaram explicar o Universo em termos de simetria, harmonia e ordem.
O físico esclarece a importância da imperfeição no desenvolvimento do Universo e argumenta que a ciência não é capaz de provar a inexistência de Deus e que jamais poderá explicar a realidade por completo, posição que contradiz Richard Dawkins e outros ateístas radicais.
Para Roald Hoffman, ganhador do prêmio Nobel de química, "Marcelo Gleiser é nosso guia lúcido para onde a beleza é encontrada em um universo imperfeito, assimétrico e acidental."
Colunista da Folha de S.Paulo, Gleiser também é autor de "A Dança do Universo" e "O Fim da Terra e do Céu", ambos vencedores do prêmio Jabuti. Abaixo, leia um trecho do novo livro.
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Às vezes, para enxergarmos mais longe, temos que olhar por cima dos muros que nos cercam. Durante milênios, magos e filósofos, crentes e céticos, artistas e cientistas vêm tentando decifrar o enigma da existência, convencidos de que a incrível diversidade do mundo natural tem uma origem única, que a tudo engloba. A essência dessa busca é a convicção de que, de alguma forma, tudo está interligado, de que existe uma unidade conectando todas as coisas. Para representar esta unidade, a maioria das religiões invoca uma entidade divina que transcende os limites do espaço e do tempo, um ser com poderes absolutos que criou o mundo e que controla, com maior ou menor arbítrio, o destino da humanidade. Todos os dias, bilhões de pessoas vão a templos, igrejas, mesquitas e sinagogas dedicar preces ao seu Deus, a fonte de todas as coisas. Não muito longe dos templos, em universidades e laboratórios, cientistas tentam explicar as várias facetas do mundo natural a partir de uma noção surpreendentemente semelhante: que a aparente complexidade da Natureza é, na verdade, manifestação de uma unidade profunda em tudo o que existe.
Neste livro, veremos que a crença numa teoria física que propõe uma unificação do mundo material - um código oculto da Natureza - é a versão científica da crença religiosa na unidade de todas as coisas. Podemos chamá-la de "ciência monoteísta". Alguns dos maiores cientistas de todos os tempos, Kepler, Newton, Faraday, Einstein, Heisenberg e Schrödinger, dentre outros, dedicaram décadas de suas vidas buscando esse código misterioso, que, se encontrado, revelaria os grandes mistérios da existência. Nenhum deles teve sucesso. Nos dias de hoje, físicos teóricos, especialmente aqueles que estudam questões relacionadas com a composição da matéria e a origem do Universo, chamam esse código de "Teoria de Tudo" ou "Teoria Final". Será que essa busca faz sentido? Ou será que não passa de uma ilusão, produto das raízes míticas da ciência?
Se, quinze anos atrás, uma vidente me dissesse que um dia escreveria este livro, não acreditaria. Passei meu doutorado e a primeira década da minha carreira buscando por essa elusiva Teoria Final, que unifica tudo o que existe. Não tinha dúvida de que esse era o meu caminho. A candidata mais popular era, e ainda é, conhecida como teoria das supercordas, segundo a qual as partes mais básicas da matéria, os tijolos a partir dos quais tudo é construído, não são pequenas partículas como o elétron, mas tubos submicroscópicos de energia que vibram freneticamente num espaço de nove dimensões. A teoria, de uma elegância matemática extremamente sedutora, deu passos importantes em direção a uma teoria unificada, se bem que, como veremos, continua longe do seu objetivo. Milhares de mentes brilhantes continuam tentando aprimorá-la, enquanto outras trabalham em teorias rivais.
Todas as teorias de unificação baseiam-se na noção de que quanto mais profunda e abrangente a descrição da Natureza, maior o seu nível de simetria matemática. Ecoando os ensinamentos de Pitágoras e Platão, essa noção expressa um julgamento estético de que teorias com um alto grau de simetria matemática são mais belas e que, como escreveu o poeta John Keats em 1819, "beleza é verdade". Porém, quando investigamos a evidência experimental a favor da unificação, ou mesmo quando tentamos encontrar meios de testar essas ideias no laboratório, vemos que pouco existe para apoiá-las. Claro, a ideia de simetria sempre foi e continua sendo uma ferramenta essencial nas ciências físicas. O problema começa quando a ferramenta é transformada em dogma. Nos últimos cinquenta anos, descobertas experimentais têm demonstrado consistentemente que nossas expectativas de simetrias perfeitas são mais expectativas do que realidades.
Mesmo que, inicialmente, minha mudança de perspectiva tenha sido bastante difícil e mesmo dolorosa, aos poucos fui reorientando minha pesquisa para uma nova direção. Comecei a reconhecer que não é tanto a simetria, mas a presença de assimetria a responsável por algumas das propriedades mais básicas da Natureza. Não há dúvida de que a simetria tem o seu valor e continuará sendo extremamente útil na construção de modelos que descrevem a realidade física em que vivemos. Porém, por si só, a simetria é limitada: toda transformação que ocorre no mundo natural é resultado de alguma forma de desequilíbrio. Como explicarei neste livro, da origem da matéria à origem da vida, do átomo à célula, o surgimento de estruturas materiais complexas depende fundamentalmente da existência de assimetrias.
Aos poucos, fui convergindo numa nova estética, baseada na imperfeição. Que me perdoe o grande Vinicius de Moraes, mas beleza não é fundamental. É o imperfeito, e não o perfeito, que deve ser celebrado. Como no famoso sinal de Marilyn Monroe, a assimetria é bela precisamente por ser imperfeita. A revolução na arte e na música do início do século XX é, em grande parte, uma expressão dessa nova estética. É hora de a ciência mudar, deixando para trás a velha estética do perfeito que acredita que a perfeição é bela e que a "beleza é verdade".
Essa nova perspectiva científica tem repercussões que vão muito além das universidades e dos laboratórios. Se estamos aqui porque a Natureza é imperfeita, o que podemos afirmar sobre a existência de vida no Universo? Será que podemos garantir que, dadas condições semelhantes, a vida surgirá em outras partes do cosmo? E a vida inteligente? Será que existem outros seres pensantes espalhados pela vastidão do espaço? De forma completamente inesperada, minha busca científica levou-me a um novo modo de pensar sobre o que significa ser humano: a ciência tornou-se existencial.
Oculta na busca pela unidade de todas as coisas, encontramos a crença de que a vida não pode ser um mero acidente: se forças superiores não tiverem planejado nossa existência, nada faz sentido. Não importa se fomos criados por deuses, como afirmam muitas religiões, ou por um universo cujo objetivo é gerar a vida. De um modo ou de outro, nossa presença aqui tem que ter uma razão de ser. A alternativa seria deprimente: qual o sentido da vida se ela tiver surgido acidentalmente num universo sem propósito? Como consequência, muitos se ofendem quando é sugerido que estamos aqui devido a uma série de acasos: Por que somos capazes de pensar, de amar e de sofrer com tanta intensidade, de criar obras de enorme beleza, se mais cedo ou mais tarde iremos todos perecer e, com raríssimas exceções, seremos esquecidos após algumas gerações? Por que somos capazes de refletir sobre a passagem do tempo se não temos o poder de controlá-la? Não, devemos ser criaturas divinas, ou ao menos parte de um grande plano cósmico. Sermos meramente humanos não pode ser toda a história.
Mas e se formos um acidente, um raro e precioso acidente, agregados de átomos capazes de se questionar sobre a existência? Será que devemos menosprezar a humanidade se não for parte de um "grande plano da Criação"? Será que devemos menosprezar o Universo se não existir um código oculto da Natureza, um conjunto de leis que explica todas as facetas da realidade? Eu diria que não. Pelo contrário, a ciência moderna, ao mesmo tempo que mostra que não existe um grande plano da Criação, põe a humanidade no centro do cosmo. Podemos mesmo chamar essa corrente de pensamento, que proponho aqui, de "humanocentrismo". Talvez não sejamos a medida de todas coisas, como propôs o grego Protágoras em torno de 450 a.C., mas somos as coisas que podem medir. Enquanto continuarmos a nos questionar sobre quem somos e sobre o mundo em que vivemos, nossa existência terá significado.
Vamos considerar esse ponto mais detalhadamente. Após apenas 400 anos de ciência moderna, criamos um corpo de conhecimento que se estende do interior do núcleo atômico até galáxias a bilhões de anos-luz de distância. Ao mergulharmos com nossos maravilhosos instrumentos nos confins do muito pequeno e do muito grande, encontramos uma infinidade de mundos de uma riqueza insuspeitada. A cada passo que demos, a Natureza nos encantou e nos surpreendeu. Com certeza, continuará a fazê-lo. Ao construirmos uma narrativa explicando como, a partir de uma sopa de partículas elementares no Universo primordial, surgiram estruturas materiais cada vez mais complexas, nos deparamos com uma incrível diversidade de formas que jamais poderíamos ter imaginado. A Natureza é muito mais criativa do que nós. Dos muitos mistérios que nos inspiram, talvez o mais instigante seja entender como a matéria inanimada tornou-se viva, e como nossos primeiros ancestrais, minúsculas bolsas de moléculas animadas, transformaram um planeta rochoso num oásis de atividade biológica em meio a um cosmo frio e indiferente.
Vendo a riqueza da vida aqui, e sabendo que as leis da física e da química permanecem válidas por todo o cosmo, voltamos nossos instrumentos para nossos vizinhos planetários, buscando avidamente por companhia. Infelizmente, apesar da convicção de que encontraríamos algo, nos deparamos apenas com mundos mortos. Belos, sem dúvida, mas destituídos de qualquer sinal óbvio de vida. Mesmo que algum ser vivo se oculte no subsolo marciano ou nos oceanos gelados e escuros de Europa, a enigmática lua de Júpiter, certamente terá pouco a ver com seres autoconscientes, capazes de refletir sobre o sentido da vida. Se civilizações alienígenas existirem - a busca por vida extraterrestre inteligente continua - estão tão afastadas de nós que, na prática (e descontando especulações um tanto fantasiosas), é como se não existissem. Enquanto estivermos sozinhos, produtos de acidentes ou não, nós somos a consciência cósmica, nós somos como o Universo reflete sobre si mesmo. Como veremos, essa revelação tem consequências profundas. Mesmo que não tenhamos sido criados por deuses ou por um cosmo com o propósito de gerar criaturas inteligentes, a verdade é que estamos aqui, refletindo sobre a razão de estarmos aqui. E isso nos torna muito especiais.
Nosso planeta, pulsando com incontáveis formas de vida, flutua precariamente num cosmo hostil. Somos preciosos por sermos raros. Nossa solidão cósmica não deveria incitar o desespero. Pelo contrário, deveria incitar o desejo de agirmos, e o quanto antes, para proteger o que temos. A vida na Terra continuará sem nós. Mas nós não podemos continuar sem a Terra. Ao menos não até encontrarmos uma outra casa celeste, o que tomará muito tempo. Basta olhar em torno, para a situação delicada em que se encontra o nosso planeta, para constatar que tempo é um luxo que não temos.
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