AMERICAN
DREAM
Da violência
doméstica no Pará à universidade nos EUA: a saga de uma jovem brasileira na
mira da deportação
Estudante Valéria do Vale, que se diz sentir 'americana',
está entre grupo de 7,4 mil jovens brasileiros beneficiados por programa
revogado por governo Trump e que agora correm risco de serem obrigados a deixar
o país.
BBC
BRASIL.com - 28 SET/2017 08h43 atualizado
às 08h48
A decisão do
presidente americano Donald Trump de revogar as autorizações de moradia e
trabalho dadas por Barack Obama a mais de 750 mil crianças e adolescentes que
entraram ilegalmente nos EUA, trouxe à tona histórias dramáticas sobre o futuro
de mexicanos e centro-americanos - principais beneficiados pelo Daca (Deferred
Action for Childhood Arrivals), um programa criado em 2012 para regularizar a
situação destes jovens, conhecidos como "dreamers" (ou sonhadores).
Valéria
cresceu sob o medo constante de ser deportada | Foto: Arquivo pessoal
Mas o futuro
é incerto não apenas para eles. Desde a revogação do decreto, em 5 de setembro,
o grupo formado por 7,4 mil "dreamers" nascidos no Brasil, segundo os
dados oficiais mais recentes (junho de 2017), voltou a dormir e acordar com o
fantasma de oficiais de imigração batendo na porta com ordens de deportação.
A maioria
mal fala português, nunca voltou ao Brasil e cresceu cercada por referências
americanas - dos livros e colegas de escola, às comidas e aos programas
favoritos de TV.
O Brasil
ocupa o sétimo lugar no ranking de países de origem mais atendidos pelo Daca.
No topo estão México (622,7 mil beneficiários), El Salvador (28,5 mil) e
Guatemala (20 mil).
Os
opositores do programa argumentam que ele dá anistia a imigrantes ilegais,
autorizando estrangeiros irregulares a disputarem postos de trabalho que
poderiam ser ocupados por americanos ou imigrantes em situação regular.
Defendem também que, quem desrespeitou a lei, não deve se beneficiar de
políticas lenientes. Alguns alegam ainda que esses filhos de imigrantes não são
confiáveis e oferecem risco à segurança nacional.
Já quem o
defende afirma que o Daca apenas evita a deportação imediata, sem garantir
residência permanente ou cidadania futura. Seria uma forma de assegurar condições
minimamente decentes a pessoas que não escolheram atravessar a fronteira de
forma irregular - e que comprovaram que estudam e não têm antecedentes
criminais.
A iminência
da deportação para um passado distante ou praticamente inexistente (muitos
vieram para os EUA ainda bebês de colo) reacende traumas antigos - como os da
estudante Valéria do Vale, que chegou aos Estados Unidos aos 7 anos, fugindo
com a mãe e a irmã da pobreza e da violência doméstica no interior do Pará.
"Você
era tão pequena. Deve ser difícil se lembrar do que aconteceu naquele dia,
não?", pergunta a BBC Brasil à estudante, que na noite da travessia foi
separada da família e entregue a estranhos para cruzar um rio na fronteira
entre México e Estados Unidos, no fim de 2004.
"Lembro
de cada segundo como se fosse hoje", responde a estudante de ciências
políticas de 19 anos.
Depois de
guardar o segredo de sua ilegalidade por 12 anos e enfrentar preconceito de
onde menos esperava ("sempre ouvi histórias de brasileiros que delatavam
brasileiros para a imigração"), hoje, Valéria é a primeira pessoa da
família a chegar à universidade, graças ao Daca.
O caminho
até chegar aos EUA
"Não
tem como entender algo que você nunca viveu", adverte a estudante,
enquanto conta sua história.
Após
seguidas agressões do ex-marido e sem perspectivas de trabalho na pequena
cidade de Jacundá, a 400 km de Belém (PA), a mãe de Valéria decidiu recomeçar
com as duas filhas, então com 7 e 1 ano e meio de idade, nos Estados Unidos, onde
a irmã já vivia legalmente.
"Minha
mãe era vítima de violência doméstica. Em uma cidade pequena como Jacundá, não
tem para onde ir. Não tem para onde crescer. E não tem lei", diz a atual
moradora de Boston (Massachusetts).
Após ter o
pedido regular de visto recusado, a família decidiu voar para o México. "O
oficial (do consulado americano) viu que meu pai não viajaria e negou nosso
visto. Aí minha mãe decidiu cruzar a fronteira (do México aos EUA). Nenhuma de
nós sabia bem o que isso significava", lembra Valéria, que intercala um
português com sotaque americano com termos em inglês, como "you know"
(sabe?) ou "whatever" (tanto faz).
"No
México, passamos uma semana dentro de uma casa com um bocado de gente. Os
coiotes (agentes ilegais que transportam imigrantes em condições precárias)
ensinavam a gente o que teríamos que falar depois de cruzar."
"Ensinavam
o quê?", pergunta a reportagem. "Eles formavam famílias de pai, mãe e
filho. Então, a gente tinha que combinar para poder falar sobre um passado que
não existiu. Como éramos três mulheres, me separaram de minha mãe e minha irmã,
que era um bebê, e eu fui com desconhecidos", lembra a estudante.
Ela
continua: "Fiquei num deserto um dia inteiro, cruzamos o rio e eu pensei
que fosse me afogar. Fui nas costas da 'esposa' e a água estava no pescoço
dela. Muito traumático."
Recebida por
outros coiotes já nos Estados Unidos, Valéria ficou 20 dias sem ter notícias da
mãe e da irmã.
"Foi
bem emocionante encontrá-las de novo. Quando se cruza a fronteira, muita coisa
pode acontecer. Tem o calor, tem fome e sede, tem gente sequestrada… Ela estava
muito preocupada."