O CAPITALISMO DO POVO (11/08/85)
COMENTÁRIO PRÉVIO
EU UTILIZEI ESTAS SUGESTÕES PARA AS
PROPOSTAS DE MEU IMPOSTO ZERO E DEPOIS PARA REDIGIR O TEXTO:
*Roberto de Oliveira Campos
“A coisa mais importante para os governos não é
fazer as coisas que os indivíduos já estão fazendo, ou fazê-las um pouco melhor
ou pior; e sim fazer aquelas que no presente ninguém possa fazer” (Lord
Keynes).
Para o começo de conversa precisamos de uma revolução
semântica. A expressão “setor privado” inspira uma conotação de egoísmo e
apropriação. A expressão “setor público” transmite a ideia de generosidade.
Isso é injusto e inadequado. Mais correto seria, como sugere o economista
paulista Rafael Vechiatti, chamarmos o setor público de “setor coercitivo”, e o
privado de “setor voluntário”.
Sempre que se fala em desestatização, surge logo a
indagação: de onde virão os recursos para o setor voluntário comprar as
empresas do setor coercitivo? Uma resposta complexa é explicar que: 1) o
governo não gera recursos e sim administra os recursos hauridos do setor
voluntário por tributação ou tarifas; 2) que a poupança do governo é hoje
negativa e que seu déficit é coberto mediante sucção da poupança privada; 3) que,
na medida em que o Governo corte suas despesas, liberando a poupança privada,
esta poderia comprar as empresas do “setor coercitivo”. Estas, aliás, não
nasceram do nada e sim de tributos pagos pelo “setor voluntário”. A velocidade
de geração de recursos para a privatização dependeria assim apenas da
velocidade da redução do déficit público e da liberação das poupanças do setor
voluntário.
Num sentido fundamental, entretanto, o problema é
simples e não exige qualquer despesa. Basta uma revolução conceitual, que pode
ser feita por definição legal. O importante, num primeiro estágio, é separarmos
o conceito de propriedade, do direito de gestão, diferenciando-se “ações de
propriedade” de “ações de gestão”. O Governo é gestor das despesas públicas.
Mas não precisa ser seu proprietário. As empresas públicas devem ser do
público.
É esse o objetivo do projeto de lei número 139 que
apresentei ao Senado Federal, em junho de 1983, e que há dois anos ali dorme o
sono dos justos, pois as ideias simples são em princípio escandalosas. Nesse
projeto se prevê que o governo devolva aos cidadãos a propriedade das poupanças
deles arrecadadas, mediante a transferência gratuita de ações integralizadas –
boas ou más – que sejam de propriedade da União, suas autarquias e entidade
públicas, a um grande fundo de repartição de capital. Todos nós, contribuintes
do INPS ou IPASE ou Funrural receberíamos gratuitamente frações ideais desse
fundo. Os dividendos eventualmente resultantes seriam creditados aos cotistas,
vale dizer, ao universo dos contribuintes, cujos impostos financiaram
originalmente a criação dos elefantes estatais. As ações ficariam em custodia
num organismo central, que poderia ser a Caixa Econômica Federal, ou qualquer
outro órgão suficientemente computadorizado, que manteria escrituração da
carteira de ações dos beneficiários. Enquanto mantidas em custódia, essas ações
seriam de propriedade, porém não de gestão. O poder de voto e de gestão
continuaria, como no presente, nas mãos dos administradores governamentais, até
que essas ações doadas se transformassem em ações vendidas ou negociadas,
através dos mecanismos normais de Bolsas de Valores ou de licitação de ações. O
projeto de lei acima citado prevê que a alienação das ações ou a retirada da
custodia se faça gradualmente (à razão de 5% ao ano), a fim de na se
congestionar o mercado de valores.
Se a privatização da propriedade pode ser
resolvida, resta o problema da privatização da gestão, indispensável para
aumento da produtividade global do sistema. Esta continuaria a ser buscada
através dos programas correntes de desestatização, por venda em bolsa ou
licitação. O importante seria abandonarmos a ideia – usada pelos estatizantes
para sabotar a desestatização – de que o Governo tem que reaver integralmente o
capital investido. Em muitos casos, os investimentos foram superdimensionados,
com custos financeiros tornados proibitivos pela lerda execução, de sorte que
seria irrealista esperar vendê-las senão pela rentabilidade real ou esperada do
patrimônio, aferida segundo as regras do mercado.
O programa de “repartição do capital” inauguraria
imediatamente o capitalismo do povo. O programa de “desestatização” aumentaria
gradualmente a eficiência de gestão, além de trazer receitas, que o Governo
utilizaria para sanar aflitivas carências básicas – analfabetismo, endemias e
epidemias, desnutrição e insuficiência dos serviços básicos de infraestrutura.
Não faz sentido o governo ter postos de gasolina quando não tem postos de
saúde, ou competir na fabricação de computadores quando não tem dinheiro para
cuidar da malária...
Se há hoje uma constatação universal é a da
falência do Estado-empresário. Até mesmo os regimes socialistas estão sentindo
a rigidez e o desperdício dos sistemas centralistas. No universo das estatais
brasileiras, o julgamento da eficiência é dificultado porque, contrariamente ao
previsto no Art. 170, Parágrafo 20 da Constituição Federal, elas desfrutam de
privilégios de mercado ou vantagens fiscais inacessíveis às empresas privadas.
A Petrobrás, por exemplo, é lucrativa, mas desfruta de um monopólio que impede
a aferição de eficiência. O Banco do Brasil é lucrativo, mas recebe recursos
trilionários da Conta de Movimento do Tesouro a juros simbólicos, e coleta
depósitos compulsórios de entidades públicas, sem ter que pagar os altos custos
de captação. A Vale do Rio Doce e Usiminas, que operam superavitariamente e sem
subsídio, em mercados competitivos, figuram talvez entre as únicas empresas
sobre cuja eficiência não pairam dúvidas. Os grupos Telebrás e Eletrobrás não
podem ser julgados porque operam em condições monopolísticas, caso em que o
lucro pode resultar de manipulação tarifária e não eficiência competitiva.
O importante é acentuar que o Ministro Dornelles e
Roberto Gusmão, que pregam a privatização por sentirem na carne os abusos dos
elefantes enlouquecidos do setor coercitivo, não precisam se preocupar
inicialmente com a carência de recursos para a privatização. Podemos privatizar
imediatamente a propriedade por transferência gratuita, e, mais gradualmente, o
voto e a gestão, pela venda convencional das ações à medida que o mercado as
absorva. Mas mesmo o primeiro passo tem consequências psicológicas importantes.
Sentindo-se proprietário, ainda que em frações minúsculas, das empresas
públicas, os contribuintes se interessariam em fiscalizá-las, na esperança de
algum dividendo, e para isso se organizariam em associações civis, a fim de se
manifestarem nas assembleias gerais. Os gestores, sentindo-se também coproprietários,
ainda que microscópios, talvez deixassem de considerar os dinheiros públicos um
bem de ninguém. E o lucro da empresa passaria a ser considerado o que realmente
é, um prêmio do desempenho e não uma secreção de cupidez capitalista. É uma
perfeita imbecilidade dizer-se que não se pode privatizar as estatais porque
elas são “patrimônio do povo”. Precisamente por isso é que devem ser
privatizadas, na forma indicada no projeto de lei número 139. Para que sejam do
povo. Hoje são dos tecnocratas, que às vezes delas abusam, ou dos políticos,
que as desfiguram. O povo não tem vez.
*Defensor apaixonado do liberalismo.
Economista, diplomata e político também se revelou um intelectual brilhante. De
sua intensa produção, resultaram inúmeros artigos e obras como o livro A
Lanterna na Popa, uma autobiografia que logo se transformou em best-seller. Foi
ministro do Planejamento, senador por Mato Grosso, deputado federal e
embaixador em Washington e Londres. Sua carreira começou em 1939, quando
prestou concurso para o Itamaraty. Logo foi servir na embaixada brasileira em
Washington, e, cinco anos depois, participou da Conferência de Bretton Woods,
responsável por desenhar o sistema monetário internacional do pós-guerra.
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